Apresentação

Este blog é destinado a narrar experiências de pais, de familiares e de amigos de crianças e de jovens com trissomia e, também, dos próprios indivíduos com síndrome de Down. Se constitui também num espaço aberto para compartilhar experiências comuns e, com isso, aprender com as diferentes formas de experienciarmos as relações com esses indivíduos, deles verem o mundo e do modo como o habitam. Para isso, pressupomos que os participantes desse blog se disponham a uma amizade (Philia) que seja suficiente aberta para ver no modo de vida (philosophia) dos indivíduos com Down, uma certa sabedoria (sophia), que nos ajude a pensar o que somos nós na relação com esse outro tão familiar e, ao mesmo tempo, tão diferente do que somos. Acreditamos que essa filosofia Down seja possível, talvez porque a experiencie cotidianamente com a nossa filha Ana Sophia, que transformou efetivamente nossas vidas com sua presença e nos ensinou o quão precioso é conviver com a diferença. Entendemos, também, que além de um espaço de troca da experiência comum, esse blog pode ser um dos locais onde uma comunidade silenciada poderá falar (como já o vem fazendo em outros meios), vencendo a vergonha e o medo para se mostrar a uma comunidade que pouco a vê, salvo por questões de caridade, algumas vezes de direito, mas pouquíssimas vezes como tendo algo a dizer. Talvez, ainda que muito remotamente, este seja um meio de tentar sensibilizar essa comunidade a qual pertencemos, inclusive os profissionais que trabalham com esses indivíduos, para que os vejam de outro modo, com o efetivo valor e dignidade que merecem. Ao menos esta é a ambiciosa proposta de seus criadores: Pedro Angelo Pagni e Neuci Leme de Camargo. E também a nossa modesta herança cultural para Ana Sophia, a quem dedicamos este blog.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Down Sophia (A menina)


O ensaio que apresentamos nesta postagem  se chama "A menina..." de Dagmar de Mello e Silva. A autora é Doutora em Educação, professora da Universidade Federal Fluminense e mãe de Rachel. Desfrutem da leitura e bom aprendizado com a diferença!



A Menina...

Menina, esse é para você
[...] Feliz daquele a quem uma asa vigorosa pode lançar às várzeas claras e serenas; aquele que, ao pensar, qual pássaro veloz, de manhã rumo aos céus liberto se distende. Que paira sobre a vida e sem esforço entende a linguagem da flor e das coisas sem voz!
Charles Baudelaire

É fim de tarde de uma quarta feira de cinzas, o tempo está nublado e os ânimos parecem combinar com o dia. A mãe está no quarto lendo. A menina se aproxima, deita-se ao seu lado...
Sinto a mão leve, seu toque é tênue, mas intensamente sentido. Rachel percorre meu braço até a cabeça, passa as mãos pelos meus cabelos e me pede um beijo.  Beijo-a levemente nos lábios como costumamos fazer. Chorosa ela comenta: – Mãenão posso te perder...
A mãe também tem esse medo. Dos seus medos, esse a acompanha desde que a menina nasceu. A mãe pensa que todas as mães de pessoas Down deveriam ser imortais. Ela responde para a menina: - Pense nisso agora não.
Vinte e dois de março de 1985. “Por quem os sinos dobram? Por que será que os sinos sempre parecem dobrar por alguém?”...
Eram 7:55 horas da manhã. Os sinos estavam dobrando em meio aquela confusão instaurada no centro cirúrgico. Tudo parecia estar caminhando tão bem. Apesar de ter apenas vinte quatro anos, já não era a primeira vez que vivia uma experiência daquela. Seu primeiro filho nascera há três anos, mas ainda se sentia uma menina e se sentirá assim ao longo de muitos e muitos anos de sua vida. Mesmo quando a vida lhe exigir coragem para enfrentar os percalços que lhe imporá, mesmo assim, a mulher se sentirá uma menina.
Os sinos dobravam disso eu lembro bem...
Assustadoo pediatra segura a criança e questiona sobre a posição da mesa para os exames da recém nascida, ao alcance dos olhos da mãe. A mãe pressente que algo não está bem. Pede para ver a menina e ele lhe mostra de longe. Diz que precisa agasalhá-la, pois está frio e argumenta que depois a mãe poderia vê-la melhor.
A mãe diz-lhe que não. Afinal ela é sua filha e quer vê-la agora. Naquele tempo ela ainda acreditava que os filhos eram das mães.
O médico se aproxima e abaixa um pouco os braços deixando à vista da mãe a menina feia de intensos olhos azuis esbugalhados, amparada por suas mãos. A mãe ainda lembra das aulas de psicologia onde aprendeu a produzir sujeitos. Abre a mãozinha serrada tão comum em recém nascidos e o que vê lhe dá a esperança de que sua intuição se equivocara. Pergunta ao médico se existem mongolóides com mais de uma linha na mão. Os olhares se encontram, mãe e médico se comunicam em silêncio.
Desejei dormir e não acordar mais naquele momento, não consegui...
O outro é aquele que nos interroga quem somos. O problema é quando nos deparamos com um outro que nos apresenta um eu difícil de ser suportado. Talvez esse fosse o maior motivo da insônia da mãe.
A mãe lembra-se do mau presságio no parque de diversões. Naquele tempo, ela acreditava em maus presságios. Estava na fila do carrossel com o primeiro filho. Na frente uma mãe com um menininho mongol (ela ainda chamava-os de mongóis). Um frio percorreu sua espinha... Algo dizia que dali a dois meses ela estaria com um filho “assim”.
Como assim?
A Síndrome de Down ou Trissomia do cromossoma 21 é um distúrbio genético causado pela presença de um cromossomo 21 extra, total ou parcialmente. A síndrome é caracterizada por uma combinação de diferenças maiores e menores na estrutura corporal. Está associada a algumas dificuldades de habilidade cognitiva e desenvolvimento físico, assim como de aparência facial. Pessoas com síndrome de Down apresentam uma habilidade cognitiva abaixo da média, geralmente variando de retardo mental leve a moderado. Um pequeno número de afetados possui retardo mental profundo. É a ocorrência genética mais comum, estimada em 1 a cada 800 ou 1000 nascimentos.(WIKIPÉDIA, 2011)
O teatro está cheio. A mãe está tensa. É sempre uma grande tensão para ela principalmente agora que Rachel cresceu e seu corpo é de mulher. Antes, enquanto criança, tudo era mais fácil. Não quer expô-la, se justifica. Às vezes se interroga se o medo da exposição não é dela própria. Acha que ela tem consciência disso. A menina/mulher entra no palco e dança. Dança como sempre dançou. Seu corpo sabe como expressar o que ouve. A mãe se orgulha e sente-se aliviada. Não consegue deixar de se emocionar quando a vê dançar. Definitivamente ela está sempre a lhe ensinar que a vida está aí para ser celebrada.
Quem é o outro? Essa pergunta passou a acompanhar a mãe ao longo de sua existência. Ela ainda não tem conclusões definitivas. Talvez nunca terá. De uma coisa ela tinha certeza: nem todos os Downs são dóceis como costumava ouvir das pessoas. ‘Dóceis são os cachorrinhos de madames!’ Pensava irritada diante de comentários como esse...  Só pensava, mas nada dizia. Sua mãe e sua avó tinham lhe preparado para ser uma mulher educada.
O encontro mais difícil depois do nascimento de Rachel foi o encontro com a avó materna. A velha e distinta senhora, referência de seus valores e modos de estar no mundo. Como olhar de frente aquela mulher, símbolo de vaidade para a família!?  
Desde que nasci, com exceção de seu leito de morte, não me lembro de vovó sem seu Tailleur e broche de camafeu na lapela. Cabelos brancos impecáveis domados por uma redinha quase imperceptível, meias finas e sapato Chanel. Uma dama nos modos de vestir e se comportar. Falava francês, jogava xadrez e debatia os mais diversos temas da atualidade. Bordava e fazia tricot, conhecia óperas e músicas clássicas como deveriam fazer as mulheres educadas de seu tempo. Filha mais nova de uma família de seis irmãos, vovó se orgulhava de sua origem. Menos por uma tradição aristocrática, mas, por se tratarem de intelectuais reconhecidos na sociedade.
Como olhar de frente para aquela mulher. Ela, a primeira neta. Aquela que assumira para si a responsabilidade de atender expectativas que não sabia sequer se eram dela. O que dizer diante daquela mulher que lhe ensinara tanta coisa? Jogar xadrez, ler “Pollyana” e as “Meninas Exemplares”, ter gestos clássicos de uma bailarina... Justamente ela que se sentia responsável por dar continuidade ao que hoje nem ao menos consegue definir o que?! ‘- Desculpe vovó...  Não queria que fosse eu a trazer esse desgosto para a família!’  Silêncio... Avó e neta choram abraçadas.  
O inferno são os outros, já dizia Jean Paul Sartre...
-Mãe eu sou doente?
- Não filha, você não é doente.
- Então porque Guilherme me chama de doente?
-Guilherme é um bobo, não entende que cada um tem seu tempo e o seu é um pouco mais lento do que o da maioria dos seus coleguinhas.
A mãe vai à escola. Tem hora marcada para conversar com a coordenadora pedagógica. Expõe a conduta de Guilherme e pede que esta intervenha. A coordenadora argumenta que Guilherme tem dificuldades de se relacionar com as diferenças e que precisa de tempo para isso. Depois dessa visita a mãe retornará a escola muitas outras vezes até que a própria Rachel ensine Guilherme a se relacionar com as diferenças.
As crianças do terceiro ano estão eufóricas. Vão elaborar um cartão para dar de presente para o dia dos pais. Guilherme prepara o seu com todo capricho. É o primeiro a terminar e expõe sua obra a todos com orgulho. Sua mãe é professora da escola, o que lhe confere certo status entre os amiguinhos. Rachel sai da sala alegando ir ao banheiro e ao retornar traz um recado para Guilherme. - Sua mãe está lhe chamando...
Guilherme retorna irritado com a mentira. Olha para sua mesa e constata que a menina picou em pedaços o cartão que ele tinha preparado com tanto capricho. Queixa-se com a professora e quando esta pergunta a menina Down, porque fez isso, ela responde com firmeza: - porque eu sou doente! A menina fez a mãe pensar sem palavras. Não havia porque palavras para pensar. Tudo ali estava dito, no acontecimento.
Dessa vez é a mãe que é chamada à escola. A coordenadora e a professora estão juntas. Dizem que Rachel precisa de uma psicóloga. A mãe pergunta o porquê. Rachel está com dificuldades de se relacionar com sua própria diferença...
Quem é o outro? Seria o outro a medida de nossos olhos?
- Mas o grau dela é fraquinho não é? Ela é quase... normal...
Não ela não é normal, eu não sou normal e não conheço ninguém normal! Abomino os discursos que normatizam modos de ser e estar no mundo. Enquadrando existências em padrões universais, produzindo diferenças anormais e discursos sobre tolerância a “essas” diferenças. Uma sociedade de bonzinhos por suportarem os diferentes que eles mesmos criaram. Sempre que ouço colocações desse gênero lembro-me das palavras de Luis Antônio Baptista: “Cuidado, eles poderão te converter em nome, identidade ou vazio[1]
O Galeria Café é reconhecidamente um gueto de Gays. O evento é de encerramento do carnaval. A mãe leva a filha. O namorado da mãe vai tocar na rua em frente à casa noturna. O som da bateria invade os corpos presentes e como não poderia deixar de ser, Rachel faz aquilo de que mais gosta: dançar. A menina que sonha ser rainha de bateria procura fazer jus ao seu sonho, só que dessa vez ela não será a única. Sua diferença não fará diferença, pois terá que dividir espaço com muitos outros diferentes que também desejam estar no lugar da rainha da bateria.  Go go Boys, gays e meninas de programa se misturam com os moradores do bairro de Ipanema exibindo sensualmente seus corpos sinuosos ao ritmo dos tambores. A menina que costuma fazer diferença perde sua condição de excentricidade. Aqui a diferença não exerce diferença.
A mãe lembra bem das palavras de Núria Perez lidas em um livro de Carlos Skliar[2]: “Trata-se da experiência de viver junto daqueles e daquelas que nunca são o que deveriam ser, pois sempre estão sendo para os outros aquilo que alguém jamais desejaria ser, e bem se sabe que alguém é na medida do desejo dos outros...”
- Uma menina! Uma neta mulher! A avó já sonha com os vestidos de festa, com as apresentações de balé, com as bonecas, com os penteados... Sonha com as brincadeiras que realizará com a nova boneca já que a sua antiga criou vida própria e não se submete mais aos seus caprichos...
Mãe... Você não percebeu nada? Ela não vai poder atender aos seus sonhos. Sua neta não é normal.
Naquele tempo a mãe acreditava na existência de pessoas normais. Achava que as pessoas se encerravam em uma conclusividade.
Um acontecimento imprevisto é o que mais facilmente provoca o pensamento: irrompe na continuidade temporal e atrai nossa atenção. Rompe com nossa tendência a um ser dado. Obriga-nos a começar desde o início. O que já foi pensado é insuficiente para dizer o que aconteceu. É algo que não encontra palavras para ser reconhecido. O pensamento será essas palavras (ZAMBONI, 1996, p. 13)
Quinze horas. A enfermeira comunica a mãe a chegada da criança ao quarto. Não, não era um pesadelo. Ela não iria acordar, pois nem ao menos chegara a dormir. Nada estaria bem. Ela sempre esteve acordada. Era tudo real. A menina estava ali bem na sua frente. Ela teria que alimentá-la. Teria que ser o que sempre foi antes, uma boa menina, agora uma boa mulher. Assumir seu compromisso de mãe era seu dever naquele momento. Afinal, aquele ser estava ali por conta dela.
O médico já havia lhe avisado sobre a dificuldade de amamentar crianças Down. Elas são hipotônicas e essa flacidez também está presente na boca. Daí colocarem tanto a língua para fora. A mãe toma a menina em seus braços e mais uma vez se depara com aqueles imensos olhos azuis esbugalhados. Olhos que tanto encantariam ao longo de sua vida dali para frente, mas ela ainda não sabia dos acontecimentos que a esperavam.
Rachel era muito feinha. Magrinha, magrinha. É certo que Gabriel não nasceu nenhuma belezura e foi ficando bonito depois, mas Rachel... Impossível não se impressionar com tanta feiúra. Seus olhos eram o que mais impressionavam. Eram como duas bolas de gude azuis, mas o que, em princípio, seria um privilégio estético perdia a beleza, pois suas pálpebras superiores ficavam dobradas expondo a face interna avermelhada por vasos sanguíneos. Olhos que me fitavam com tamanha intensidade que me faziam sentir vergonha de meus sentimentos. Aquele serzinho tão frágil, que acabara de nascer, como que se rebelando a uma sina anunciada, agarrou com a boca meu mamilo e sugou com tamanha força que me fez estremecer o corpo. Foi aí que a mãe entendeu que um corpo que resiste é uma resposta ao mundo...
As forças do mundo não cabem numa só pessoa e o mundo não tem paz, ele é nervoso, finito, inventado e reinventado a todo momento. Os que afirmam que dentro de si está o tesouro desejam a paz e o silêncio, e qualquer ruído do mundo incomoda a solidão tecida pela paz. (BAPTISTA, 1999, p.81)
Teatro Municipal de Niterói. O grupo Teatro Novo acaba de se apresentar. Os jovens atores Down estão eufóricos. Acreditam que nessa noite as posições se misturaram (pelo menos a cena quer fazer crer que sim). As fronteiras da alteridade, tão difíceis de serem transpostas, parecem ter se diluído. O público aplaude de pé. Uma pessoa na platéia comenta: - Eu não sabia que eles pensavam!  A mãe ouve o comentário e esboça um sorriso sarcástico. Dessa vez pensa com palavras: - Quem é o outro? Não, as fronteiras nunca estiveram tão bem definidas.
A mãe fica incomodada com o assédio. Todos querem parabenizá-la pelo desempenho da filha. Avista a mocinha conversando com um rapaz alto. Aproxima-se para averiguar de que se trata. O rapaz a cumprimenta perguntando se ela não o reconhece. Diante da hesitação da mãe ele comenta: - Estudei com Rachel. Fomos alfabetizados no mesmo ano. Havia passado por aqui durante a semana e reconheci minha amiguinha de escola no cartaz. Faltei à faculdade para estar aqui. Queria assistir àquela que foi tão importante na minha vida. Queria que Rachel soubesse o quanto ela me possibilitou ser uma pessoa melhor. A mãe se emociona com as palavras do rapaz. E novamente se pergunta: Quem é o outro? Dessa vez uma pista: o outro é aquele que nos confere existência. O problema está na afirmação ou negação daquilo que o outro nos confere.
A menina quer ser cantora. Impossível! Pensa a mãe... Não existe pessoa mais desafinada! A mãe achava divertidas as escolhas e sonhos da menina. Mais tarde ela pode entender porque se sentia tão atraída por pensadores que, como Nietzsche, viveram na dobra, no limite entre o pensamento e a loucura. Lá onde a experiência do pensamento está fora, para além da razão lógica. Onde o pensamento pode ser a experiência de uma subjetividade livre que não se rende à sujeição dos saberes instituídos.
Todo dia pai e filho saem para passear pela manhã. O pai já apresenta sinais do cansaço pelos tempos vividos. O rapaz já aponta os traços que a maturidade imprime com o passar do tempo. Pai e filho caminham muito devagar como se um carregasse o peso da vida do outro. O menino de cinco anos olha para a cena, calado dirige seu olhar para a mãe. É assim todos os dias no horário de entrada da escola, até que um dia o menino toma coragem e pergunta para a mãe: - Minha irmã ficará assim? A mãe diz que está se esforçando para que sua irmã tenha mais autonomia, mas não pode garantir como sua irmã estará no futuro. Amá-la seja como for é o que mais importa.
A menina hoje tem vinte seis anos. A mãe está ansiosa por ver as imagens recuperadas de uma fita VHS onde se encontra sua primeira apresentação de dança, há vinte anos. O olhar de hoje não reproduz as emoções do passado. Na recherche de um tempo perdido o que encontrou foram fragmentos, reminiscências de um tempo sem retorno, e mesmo que esse retorno fosse possível, estaria sob uma condição in memoriam. Compreendeu, então, que o tempo só retorna sob a estética da diferença. Diferença produzida pelos acontecimentos históricos, o que nos impossibilita resgatar as emoções acontecidas no passado.
Impossível trazer à tona as antigas sensações, detalhes, emoções daquilo que foi vivido um dia. Mas, se o passado não pode ser sentido como foi um dia, suas reminiscências permanecem presentes, ressignificando a relação entre a memória de nossos afetos de ontem e hoje, encontro de tempos entrecruzados que se fazem pela diferença, nos levando a entender que o tempo nunca está perdido e que, portanto, não se trata de procurar fixamente nas experiências passadas os sentidos que estão no presente.
A família estava toda reunida. Celebravam os noventa anos de vida da matriarca. A bisavó da menina, a contragosto de seus descendentes, pediu que fizessem uma missa de comemoração. A família aceitou. No banco da frente senta a avó com a menina. A mãe, agnóstica, prefere não participar do ato litúrgico e permanece sentada, observando, em um dos últimos bancos da nave, ao lado de uma das tias. Em sua homilia o sacerdote parece realizar muito mais uma extrema unção pelos noventa anos vividos do que a celebração dos próximos possíveis anos que poderiam estar por vir. Era como se aquele tempo já se bastasse para aquela mulher. No ato da comunhão a menina e a bisavó se aproximam do altar. A mãe esboça o desejo de interceptá-laAfinal ela nunca havia sido iniciada naquele ritual. A tia faz sinal para que ela não interceda, ela recua. O padre coloca a hóstia na boca da menina que, ao grudar no céu da boca, começa a provocar-lhe ânsias de vômito. Antes de acudi-la, a mãe precisa se recuperar do impulso de riso diante daquela situação cômica.
Mais uma vez a menina provocara acontecimento. Diante da força retrógada daquele discurso religioso que proclamava a resignação há um tempo Cronos que devora as intensidades presentes naqueles noventa anos de vida, a menina, simbolicamente, reage e mais uma vez ensina a mãe que é preciso potencializar a vida por acontecimentos que germinem experiências geradoras de múltiplas variações de existir. A mãe lembra-se de uma aula de filosofia em que o mestre comentara: “Nós começamos a jogar moralidade em cima dos acontecimentos [...] tirem a moral dos acontecimentos e coloquem uma Ética. Ética é a potência.[3]
Feira Cultural da Praça Quinze. O Grupo de Teatro vai realizar uma intervenção de rua. Estão aguardando a apresentação de samba acabar. Uma negra bêbada e maltrapilha samba em frente aos músicos enquanto um grupo de turistas fotografa a cena. A música entra na corrente sanguínea da menina. Ela não se contém e aproxima-se da mulher. Começam a rebolar juntas, se dão as mãos e elaboram uma espécie de pax de dieu, se abraçam como um par a valsar. A platéia se espanta, máquinas fotográficas se voltam para aquela cena inusitada, os atores do grupo chamam atenção da mãe: -Você não vai fazer nada? A mãe acha que não há o que ser feito... A música termina e a mulher maltrapilha, bêbada, beija as mãos da menina. Entrega-lhe para a mãe e faz um movimento indicativo com os dedos, comentando que ela só pode ser maluca...
A mulher negra, bêbada, fedida e maltrapilha sabe que faz parte de um grupo de pessoas infames, cujas diferenças extrapolam as diferenças toleráveis. Por isso a menina, burguesa, ruivinha, de olhos azuis, cuja diferença tem sido politicamente tolerável só poderia estar maluca ao ultrapassar as fronteiras interditas de corpos que nunca devem ser tocados.
O lugar era no décimo segundo andar de uma Universidade Pública. Na pós- graduação strictu senso. Lá onde os intelectuais se encontram. A turma de doutorandos daquele ano era composta por quinze pessoas, todos de algum modo ligados à Educação, mas com interesses muito diversos. Aquele dia ficara agendado para uma das alunas apresentar seu projeto de tese sobre Inclusão. A moça que já atuava nessa área em uma secretaria municipal de Educação, apresentava as dificuldades com que se deparava para implementar essa política na rede em que atuava. Após a exposição, uma senhora pede a palavra e comenta: - Não sei por que tudo cai nas costas da Educação! A Educação parece até um despejo de lixo. Tudo pode... Eu realmente não entendo... Um médico escolhe se quer se dermatologista, cardiologista ou não sei mais o que... Já o professor... Esse tem que agüentar tudo. Não tem nem ao menos o direito de escolher o tipo de gente que ele deseja trabalhar. Dessa vez a mãe não consegue se divertir e deixa transbordar sua indignação pedindo a palavra, fala: - Você está muito enganada. Sua colocação não procede! Assim como o médico o professor, também, pode ser especialista em português, matemática, etc... Um médico pode ser cardiologista ou dermato, mas na hora de atender não vai poder escolher o sujeito limpinho, cheiroso, inteligente e coisa e tal. Assim como o professor, o médico é formado para atender gente, e gente é de todos os modos... Fedorenta, piolhenta, com feridas, sarnas, deficiente ou não. Silêncio na sala...
Teatro lotado. Na platéia, os sujeitos normais. No palco, os outros da diferença. Esses outros que precisam existir para que possamos nos situar em oposição a eles. Esses outros que
se não estivessem aqui, não seríamos nada, porque a mesmidade não seria mais do que um egoísmo travestido. Porque se o outro não estivesse aí, só restaria a vacuidade e a opacidade de nós mesmos, a nossa pura miséria, a própria selvageria que nem ao menos é exótica. Porque o outro já não está aí, senão aqui e em todas as partes; inclusive onde a nossa pétrea mesmidade não alcança ver[4].
O silêncio passa a habitar os lugares dos mesmos, dando vez à gagueira daqueles que destroem os mecanismos que sustentam o sistema de convenções lógicas da língua. “São personagens que pertencem a um tipo de existência destinada a não deixar rastro, mas que, quando se encontram com algum tipo de poder, perdem-se de suas trajetórias fugidias, vidas infames que quando se deparam com a luz do poder que as faz falar, cintilam, ganhando corpo e destino[5]”. Personagens que encontram resistência naquilo que Deleuze costuma chamar de gagueira da língua que gera a intensidade, criação, disjunções, e porque nos coloca em constante desequilíbrio, potencializa sentidos com a vida.
Entra em cena uma das atrizes com um boneco embrulhado numa manta, nos braços. Ela está acompanha de outro ator. Seu personagem é o de uma mãe que anuncia para o pai a deficiência de seu filho que acabara de nascer. A gagueira da fala a impede de pronunciar as palavras exatas, mas, uma outra gagueira produz a linguagem que expressa o inexpressível, explica o insondável, o inexplicável. Lúcia, diante de sua dificuldade de fala, vira para a platéia e diz: - Meu bebê é suficiente mental!
Silêncio na platéia... As cortinas fecham e abrem-se novamente. Os atores do Grupo Teatro Novo retornam ao palco após algum tempo, felizes por terem povoado espaços com suas intensidades. Agradecem aos aplausos e somem com o apagar das luzes. E a menina?! Ela está entre eles...
A mãe é professora e anda cansada dos discursos voltados à educação. Discursos que promulgam palavras de ordem sem potência. E porque impotentes não produzem acontecimentos.
A mãe é professora e já anda bastante incomodada com as repetições que não produzem diferenças de fato. Ela queria encontrar um modo de “rachar as coisas, rachar as palavras para atingir as coisas onde elas crescem, naquilo que cria o novo, a atualidade[6]”. Queria encontrar um modo, onde as palavras pudessem tocar suas alunas, futuras professoras, e fazê-las ver as pessoas, para além das palavras sedimentadas que se justificam em vazios e inércias, que produzem os argumentos do despreparo: “-professora eu não estou preparada para trabalhar com essas pessoas!”
A mãe professora queria produzir acontecimento que colocasse as pessoas em movimento – comover – gerar potências, intensidades. Desfocar olhares da falta, que por se manterem enraizados em identidades próprias, não conseguem dissipá-las para fazer aparecer as descontinuidades que nos atravessam.[7]
Tomar a vida por acontecimento é o que mais desejava. Recusar a deficiência como condição condicionante. Romper com os universais antropológicos e assegurar ao ser sua historicidade. Dar-lhe uma história própria, tal como pensou Foucault: “A história efetiva se distingue daquela dos historiadores pelo fato de que ela não se apóia em nenhuma constância: nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles[8]”.
Com o filósofo aprendeu, também, que o saber não produz efeito quando se restringe apenas a compreender, é preciso cortar. Romper com as amarras de um mundo circundante que nos faz girar em torno de nós mesmos e não leva a lugar algum.
Pensou, então em escrever um livro sobre as histórias dessas pessoas infames. Pessoas toleradas, mas, que nos desejos mais íntimos de nossa sociedade se tornam indesejadas. Exceções nas leis naturalizadas dos homens.
E porque tomadas como exceções, se tornam alvo ora de curiosidade, ora de rejeição. Mas, sempre sob as luzes dos holofotes de um poder que os ilumina na medida de suas sombras inoportunas. Não para fazê-los notados em suas paixões e alegrias, mas para controlar-lhes o transtorno que suas existências provocam ao extrapolarem com seus corpos imperfeitos, as fronteiras das normas que regulamentam as repartições da vida.
A mãe preferiu não escrever o livro sozinha. Resolveu convidar companheiros outros, que por viverem ou terem vivido espaços de uma experiência onde se fundem as fronteiras inefáveis de nossa condição humana, se tornaram testemunhas de relações com a vida que se situam entre o dizível e o indizível; entre o que pode ser dito e o que de fato se diz.
Pessoas que por conviverem ou terem convivido proximamente com aqueles que a história gostaria de apagar de sua temporalidade, podem dar seu testemunho daquilo que se vive, mas, muitas vezes as palavras não dão conta de dizer, da experiência do trágico, aquilo que se localiza na cisão entre o que é possível dizer e o que se diz.
O testemunho como uma efetivação possível, uma possibilidade de dizer que carrega a potência do não-dizível e produz, mesmo que por contornos imprecisos, a possibilidade de uma nova ética[9].
A mãe queria produzir acontecimento, fazer entender o que aprendeu em teoria com Deleuze, mas, muito mais, na experiência vivida com a menina: Uma possibilidade de vida é sempre uma diferença.

Referências Bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
__________.  Infância e história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
BAPTISTA, Luis Antonio.. A cidade dos Sábios. São Paulo: Summus, 1999.
_________ Narrativas infames na cidade: Intersecções entre Walter Benjamin e Michel Foucault. 2008, (mímeo).
________. Walter Benjamin e os Anjos de CopacabanaRevista Educação Especial: Biblioteca do Professor -  n° 7, 2008.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. 
DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: E se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro. DP&A Editores, 2003
ULPIANO, Cláudio. O corpo e o acontecimento. 1989. (Aulas Transcritas). Acesso em: http://pt.scribd.com/doc/56605610/O-Corpo-e-o-Acontecimento-Ulpiano.
ZAMBONI, Chiara. Lo inaudito. In: Diotima. Traer al mundo el mundo: objeto y objetividad a La luz de La diferencia sexual. Barcelona: Icaria, 1996.



[1] (BAPTISTA, 1999, p.81)
[2] (PEREZ, Nuria in: SKLIAR, Carlos, 2003, orelha do livro)
[3] (ULPIANO, 1989)
[4] (SKLIAR, 2003)
[5] (BAPTISTA, 2008, apud FOUCAULT, 2006)
[6] (DELEUZE, 1992)
[7] (FOUCAULT, 1979, p.34).
[8] (Op cit, 1979, p. 27)
[9] (AGAMBEN, 2008)

Um comentário:

  1. Muito lindo! E parabéns pela ideia de reunir histórias, verdades e sonhos nesse espaço. Cada família é um poço de coisas e fatos, alguns curiosos, engraçados ou tristes.

    ResponderExcluir