Se deslocando ainda do universo Down e, também, da experiência da paternidade/maternidade, o presente ensaio de Ana Prado traz a experiência da autora, que é deficiente visual, narrando a sua relação com o mundo e consigo mesma. Testemunha um "olhar" outro em um mundo que tanto privilegia a visão em todos os aspectos da vida e de como esse outro que não vê, mas enxerga, se movimenta, se coloca e se mostra, nesse mesmo mundo. Um ensaio que, enfim, nos fez aprender o quanto em cada gesto, muitas vezes, tratamos o deficiente como incapaz, mesmo com tanta capacidade e potencialidade, e o quanto nos escondemos sob o véu da ação caridosa, para não mostrar nossa indiferença. Agradecemos a Ana pela contribuição e esperamos conhecê-la em breve! Boa leitura e bom aprendizado com a diferença.
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"Amar é descobrir que a deficiência do próximo, faz parte do
perfeito mosaico humano."
(Douglas Domingos Américo)
- Onde devo escrever o nome da minha mãe?
Perguntei à professora que, sentada à minha frente, voltou-se para o aluno ao
meu lado e comentou: - Tenho tanta pena
dela! E ele, um garoto de 13 anos, como eu aquiesceu: - Eu também! Fiquei sem entender o comentário e pensei: - Será que estão falando de mim?! Mas, pena,
por quê? Só por que perguntei onde devo escrever o nome da minha mãe no
certificado de “Melhor mãe do mundo”? Só havia feito a pergunta por que não
conseguia enxergar a linha. O papel era marfim e a linha de um cinza muito clarinho...
Já
se perguntaram de que modo sente uma pessoa cega ou com baixa visão, quando o
outro não reconhece, como humano, o seu modo de ver? Constantemente eu me
pergunto: qual olhar é lançado a esta pessoa, quando se deparam com um olho
esbugalhado, manchado, arregalado, um par de olhos fechados ou mesmo abertos, privados
da visão? Minha condição tem me permitido pensar sobre essas questões e
perceber que esse confronto desencadeia um desconforto que gera a necessidade
de atribuir valor ao humano. Classificá-lo numa condição existencial de menos
valor, um valor que o coloca numa condição de "menos humano".
Ah!
Quanto revela este olhar sobre o outro! Um olhar julgador, avaliativo, opressor,
piedoso! Somos educados para acreditarmos que há uma escala de valores para se
classificar o ser humano, cujas referências estão pautadas em parâmetros da sua
condição física, intelectual, sensorial. Não basta nascermos de um ser humano
para sermos considerados humanos?! É preciso que sejamos normais ou anormais?!
Humano?!
Apenas humano?! Não! Somos pessoas "especiais"! Recebemos um adjetivo
que aparentemente nos exalta, mas, nos segrega, nos diferencia, nos distancia
do "normal".
O anormal não é de natureza
diferente da do normal. A norma, o espaço normativo, não conhece exterior. A
norma integra tudo o que desejaria exercê-la – nada, nem ninguém, seja qual for
a diferença que ostente, pode alguma vez pretender-se exterior, reivindicar uma
alteridade tal que o torne um outro. (EWALD, 1993, p.87)
Início dos anos 80. Todos tinham pena de mim! Apesar dos 13 anos, era uma
menininha magricela, pele desbotada, corpo de criança, ingênua, retraída,
desajeitada e, para piorar: o "Ponto turístico" da escola. Era assim
que me sentia, sob olhares voltados para mim, tanto dos colegas como dos professores,
seja quando colava o rosto no papel para ler e escrever, ou quando os materiais
escolares caíam no chão e eu não os encontrava. Eu chorava no banheiro,
encolhida dentro do box.
“O ser humano que nos gabamos de ser, soube
sempre humilhar e ofender aqueles a quem, com triste ironia, continua a chamar
seus semelhantes. Inventamos o que não existe na natureza, a crueldade, a
tortura, o desprezo. Por um uso perverso da razão, viemos dividindo a
humanidade em categorias irredutíveis entre si, os ricos e os pobres, os
senhores e os escravos, os poderosos e os débeis, os sábios e os ignorantes, e
em cada uma dessas divisões fizemos novas divisões, de modo a podermos variar e
multiplicar à vontade, incessantemente, os motivos para o desprezo, para a
humilhação e a ofensa”. (SARAMAGO, 1999)
Festa em família. Não me lembro onde nem quando, mas o que ouvi, não
esqueci nunca mais: - Deixa ela comigo,
pois ela é cega! Eu ainda não era cega. Tinha baixa visão. - Por que não podia brincar com os outros
garotos? Só meu primo podia me pegar no pique - esconde. Eu fingia que não
ouvia, pois sabia que de nada adiantaria explicar que eu enxergava; - só não enxergava muito bem. Cedo
aprendi que na vida tem que ser 8 ou 80, meio termo não existe.
Mas o que é ver? Será que só o nosso olhar é capaz de desenhar o mundo
que nos cerca? Porque é tão difícil para as pessoas conceberem outros modos de
ver?
Evgen Bavcar professor de
filosofia e fotógrafo profissional ficou cego aos doze anos de idade, nos
oferece uma possibilidade de resistência ao imperialismo de uma visão oculocentrista.
A partir da sua própria experiência com a cegueira aliada à prática da
fotografia construiu o conceito de contra-olhar - referindo-se às imagens
construídas pelos cegos no processo fotográfico: “(...) os cegos podem, pela
primeira vez na história, criar um contra-olhar e sair da passividade insuportável
daqueles que são vistos incessantemente, sem poder olhar para eles mesmos”.
(Bavcar, 2003)
Dessa forma Bavcar questiona o absolutismo de
um modo de ver que valoriza apenas a visão da retina como via única de percepção
do real, em nossas sociedades contemporâneas. Nessa mesma obra, esse autor
comenta a respeito da experiência fotográfica vivida por um cego:
(...) compreendi
que as imagens têm realmente necessidade das trevas, da cegueira real, para
aparecerem em toda a sua fragilidade. Por muito tempo observei esse
contra-olhar subjacente ressuscitado graças a coragem de uma professora que
recusava a predominância do mundo visível, tão nefasta para todos os que não o
podem perceber à maneira de todo mundo”. (BAVCAR, 2003, p.103-104)
Primeiro
de outubro de 1984. Manhã fria, porém ensolarada. Eu e meus pais nos dirigíamos
para o hospital. Eu encarava o sol como se soubesse que estava vendo-o pela
última vez. Segurava uma mexa dos meus cabelos longos na direção de seus raios
e a via ficar dourada. - Ah, como eu
gostaria que os meus cabelos tivessem aquela cor sem precisar da luz do sol!
No quarto do hospital, vestia meu pijama de flanela cor-de-rosa que eu tanto gostava!
O médico oftalmologista entra no quarto e diz à mãe: - Cubra os pés dela. Estão gelados. Minha mãe abriu o armário e
tirou de lá um cobertor com cores vivas e os cobriu. Eu estava assustada, pois
sabia que algo estava por vir. Não acredito em premunições, mas, tive, não sei como
dizer. Será que foi intuição? Será que adivinhei? Não sei o que foi. Só sei que
acertei! Na manhã seguinte, após a cirurgia de emergência no olho esquerdo, o
qual ainda havia resíduo visual, ouvi o médico dizer que tudo havia corrido
muito bem. No entanto, nunca mais vi a luz do sol refletida em meus cabelos nem
as cores vivas de um cobertor. Fiquei cega, naquele dia.
Repouso absoluto, consultas médicas semanais. -A luz está apagada ou acesa? Não
sei. O médico, toda semana, vinha com a mesma pergunta e eu com a mesma
resposta. Ele não queria acreditar. Nem eu. Foi o fim de uma certa maneira de
viver, término de hábitos adquiridos, despojamento de realizações. A perda de formas
de relações humanas até então estabelecidas.
As perdas impostas a quem perdeu a visão são múltiplas. Elas se
inter-relacionam, elas se sobrepõem umas às outras. Qualquer uma delas é por si
mesma grave, intensa e, juntas, constituem as múltiplas limitações que é a
cegueira. Cada perda inclui um adeus doloroso. Mas, com a morte do homem de
visão, o homem cego nasce. E a sua vida pode ser boa. Entendi que a vida
modificou-se, mas não terminou.
Vida de pessoa cega. Tudo novo.
- Como encarar as pessoas que me viram pela
última vez, enxergando? Como elas
iriam me enxergar?
Com pena, é claro! Medalhinhas de santos, rezas, orações. Nada disso
mexia comigo. Sabia que estava cega e para sempre... Meus amigos permaneceram
leais, afinal:
- Não se afasta de uma amiga porque se tornou
cega!
Logo, percebi que alguma coisa estava forçada. Eles vinham e eram
gentis; mas quando iam comentavam entre si:
- Pobre Ana! Está certamente aceitando de modo
admirável!
- É penoso vê-la daquele jeito, apesar dela estar
confiante.
Compreendi que não era mais Ana, e sim, Ana, a cega.
Sentia que aos poucos, perdia meu lugar na sociedade. Entretanto, é
possível que tenha assumido um novo lugar: "Ana otimista - a pobre cega -
o exemplo de vida". Perdi meu lugar original. Haviam me dado uma nova “personalidade”,
um “novo caráter”.
É uma banalidade dizer que jamais existimos no singular.
Estamos rodeados de seres e de coisas com os quais mantemos relações. Por meio
da visão, por meio do tato, por meio da simpatia, por meio do trabalho comum,
estamos com os outros. Todas essas relações são transitivas. Toco um objeto,
vejo o outro; mas eu não sou o outro. (LEVINAS, 1982, p.50)
Ensino médio. Sistema de leitura e escrita braille. Colegas me guiando
pelos corredores da escola. Provas orais. Ai! Como enxergar faz falta! Os
trabalhos em grupo, eu fazia com quem sobrava e, se o professor organizasse
duplas, eu poderia ser mais uma, na dupla que me aceitasse. Até que perceberam
que a minha cegueira, não me impedia de pensar, problematizar, articular idéias.
Começaram a brigar pela minha companhia. Eu???? Sim, agora eu escolhia com quem
eu queria ficar.
O trabalho...
- Trabalhar, pra quê?! A família dela tem dinheiro, Seu pai tem carro
importado. Ela nem estudou aqui. Agora quer trabalhar? Diziam pelos
corredores.
Foi preciso muita humildade, parceria, interesse, num mundo, até então,
desconhecido. Ah, como aprendi a viver com os meus alunos e amigos cegos! Aprendi,
principalmente que não "devemos ter medo dos confrontos... até os planetas
se chocam e do caos nascem as estrelas" (Charles Chaplin).
- E ainda há gente que reclama da vida! Diz
a senhora, sentada ao meu lado, no ônibus que, ora me olha, ora olha a pessoa
que está em pé ao seu lado. De novo volta a comentar:
-
Gente perfeita: dois braços, duas pernas,
enxerga, ouve, fala... E veja está menina: com uma carinha tão boa!
A
senhora em pé ao seu lado fala:
- Que
judiação!
- Deus sabe o que faz!
E
o assunto vai rendendo... Rendendo... E a minha paciência se esgotando... Se
esgotando... Eu estava me sentindo um peixinho no aquário. Ainda bem que se
aproximava a hora do meu desembarque. Poucos instantes antes, me levanto e peço
licença. A senhora, ao meu lado, me empurra com o braço e grita:
- Onde você vai descer? Segura senão você cai!
Caio
sentada no banco, pois ela me dá um empurrão. Peço licença novamente, desta
vez, com mais firmeza. O ônibus já estava estacionando para o desembarque e
ela, mais uma vez: -- você vai cair de
novo! Encho o peito de ar e digo: -
Senhora, com licença! Vou saltar aqui! Ela, desesperada: - Aqui é a UERJ! Onde você vai descer? O
ônibus volta a se movimentar. Eu, sem poder sair do canto, dou um grito
sufocado: -- Motorista, por favor, pare
aí! Vou descer. E a senhora: - Onde
você vai descer? Não respondo. Empurro a senhora com todas as minhas forças
e, aliviada, piso em terra firme.
Por
que foi que cegamos?
Não
sei?
Talvez
um dia se chegue a conhecer a razão.
Queres
que te diga o que penso?
Diz...
Penso
que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não
vêem. (SARAMAGO, 1995)
Essas são as palavras com que José Saramago encerra sua obra: O ensaio sobre a cegueria. As palavras do autor português nos interrogam sobre nossas condições
existenciais a partir da metáfora do olhar. Diante de um mundo mediado por
imagens, Saramago parece querer nos fazer pensar sobre uma outra estética de
visão. Talvez a possibilidade de um deslocamento da concepção de olhar, já que o excesso visão dificulta nossa percepção de que o mundo
não se reduz somente aquilo a que os olhos alcançam.
Ando
ou rodo?!
-- Não passe por aí!
- Venha comigo.
- Ali tem uma rampa. É melhor para você! Diz
um homem, me puxando pela alça da bolsa.
- Meu senhor, posso te explicar algo?
- As pessoas cegas não têm nenhuma dificuldade em
descer e subir um ou vários degraus.
E
ele insiste, me puxando:
- Já falei aqui é melhor para você! Não vai ter que
descer o degrau. Vai só andar!
Puxo
a minha bolsa e falo...
- Senhor olhe
para mim! Olhe para os meus pés! Viu? - Tenho pés e não rodinhas. As rampas são
feitas para cadeirantes, pessoas com mobilidade reduzida,...
Não é o meu caso!
Ele,
impaciente, enche o peito de ar e diz cheio de si:
- Aprendi isto na empresa onde trabalho. Um
professor falou que as rampas são feitas, pensando nas pessoas com necessidades
especiais, inclusive, nas pessoas assim como você, o que evita que caiam.
Tentei
argumentar, mas ele me cortou, dando "tchau".
Aqueles que são considerados cegos, isto é,
aqueles que não podem perceber o mundo visual através da visão, podem,
entretanto, percebê-lo através dos sentidos remanescentes, os quais são
estimulados, sensibilizados a partir da necessidade de usá-los para
sobreviverem num mundo imagético.
A isto Bavcar chama
de vistas táteis. Ver com a ponta dos dedos e ainda, através da audição,
do paladar, do olfato. Pela pele é possível sentir o calor do sol, o vento ou o
calor do outro. (...) é possível ver o mundo pelos olhos da alma. Este é, no
entanto, um olhar incompreendido por aqueles considerados videntes. (MAGALHÃES,
2003)
Churrascaria
em Ipanema. Almoço entre amigos. Eu, a única pessoa cega na mesa. Fazemos os
pedidos. Entre conversas e risadas, bebemos e beliscamos aperitivos. O Garçom
traz os pratos e os talheres. Chega a comida. Hummm!!! O aroma está
convidativo! Uma amiga me serve. Agradeço. Pego os talheres e, no momento em
que estou levando a primeira garfada à boca, alguém, subitamente, tira o garfo
da minha mão e diz:
- Trouxe uma colher para ela. É perigoso ela se
machucar com o garfo. Fico sem ação.
Atônita. Chamamos o garçom. Questiono:
- Não entendi o porquê da colher?
- É melhor para você!
- Quem te disse que a colher é melhor para mim?
Quem sabe o que é melhor para mim, sou
eu! Meu senhor, é impossível comer
churrasco com colher. Por favor, traga um garfo e retire esta colher.
Carlos
Skliar (2003), em Pedagogia (improvável)
da diferença, nos fala da existência de dois olhares. Um olhar que parte da
“mesmidade” e outro que se inicia no “Outro”,
na “expressividade de outro rosto”. Para ele, esta distinção pode ser uma forma
de ruptura com o “eu mesmo”, “refúgio do próprio corpo” e “do mesmo olhar”,
travessia para o encontro com o outro que “retorna e nos interroga”, “nos
comove e nos denuda”, “nos deixa sem nome.” (p.67/68)
- Tem namorado ou marido? Às
vezes, me perguntam.
- Atualmente, estou sozinha. Respondo
- Você tem que arrumar um namorado que enxergue. Tem
muito rapaz bom por aí! É melhor um homem que enxergue para que ele cuide de
você.
Eu,
indignada:
- Mas... Não preciso de um cuidador. Tenho
necessidades afetivas como qualquer ser humano.
As
relações humanas entre uma pessoa vidente e uma pessoa cega, independentemente
do sexo, são vistas por muitos, como um ato de caridade, o que caracteriza quem
enxerga como “pessoa de bom coração e alma nobre”. Se estamos acompanhados por
alguém enxergante, perguntam se somos irmãos ou se ele está nos acompanhando.
Nunca questionam se somos amigos. Amizade entre uma pessoa cega e uma pessoa
vidente, para muitos, é impossível! Se estão juntos, com certeza, a pessoa com
visão está ajudando a sem visão, o que denota que nós, pessoas cegas, não temos
nada a oferecer às pessoas videntes, além do trabalho que damos a elas.
Bengala???!!!
-Você não precisa disso. Te levamos de carro.
Caso não possamos levá-la, te damos o dinheiro do táxi.
Os amigos cegos:
- Você vai aprender. Nós vamos te ensinar a usar
a bengala.
- Viu a corrente de ar?
- Então, aqui, é a esquina.
Não adiantava. Não havia incentivo nem credibilidade em casa. Com
intenção de me protegerem, estavam me impedindo de caminhar com as minhas
próprias pernas e provar para todos, inclusive, pra mim, que eu era capaz,
bastava acreditar e enfrentar o mundo. Puxa! Enfrentar o mundo! Faço isso até
hoje, desde o momento em que saio de casa, acompanhada pela minha inseparável
bengala.
Praça
Saens Pena. Meio da tarde. Ruas lotadas. Verão. Caminho pela calçada, tentando
me desviar dos carros estacionados, barracas de camelô, multidão apressada,
canteiros e atenta à minha bengala, que corre o risco de ser pisoteada. Ufa!!!
Paro em frente à faixa de segurança, aguardando o auxílio de alguém para
atravessar a rua. Ouço: "-Ela é
cega?" Apesar da pergunta não ter sido dirigida a mim, respondo com
tom de bom humor: "- Não! Estou
treinando para quando houver um apagão."
Olhares surpresos, de indignação, dúvida, medo. - Como sai na rua sozinha? Não
se perde? "Deus te ajuda, né? “eles” dizem.
Eu, perplexa, falo: - Se Deus me
ajuda, espero que Ele pare o ônibus para mim, pois está chovendo e vou ficar no
ponto sozinha.
As pessoas procuram amenizar a cegueira, buscando explicações no
inexplicável, lançando mão do transcendental.
Cegueira x beleza x sucesso.
- Nossa! Ela é tão bonita! Viu os olhos dela? São
limpinhos e verdes! Veste-se tão bem! Ela é cega, mas é inteligente, sabe muito
bem o que está falando... Para combinar, tinha que ser: cega, feia e
incompetente.
- Por que você é assim?
- Assim como? Pergunto.
- Assim! Com este problema! Boa
oportunidade para alguns esclarecimentos:
- A cegueira não é um problema; faz parte de mim, é
uma das minhas peculiaridades. E você pode dizer a palavra CEGA. Não há
problema algum em ouvi-la. A pessoa insiste:
- Mas... Você nasceu assim?
De nada adiantou o meu discurso. Então,
desisto: - Não! Nasci bem pequenininha e,
aos poucos, fui crescendo... Por que as pessoas são ASSIM?!
As
relações de tempo e espaço no mundo contemporâneo provocam distanciamentos cada
vez maiores, entre as pessoas. Não temos tempo de parar para prestar maior
atenção ao outro. Nesse contexto a dicotomia entre videntes e não videntes fica
cada vez mais clara. “Estamos todos sofrendo de uma espécie de cegueira social
que nos afasta pelas nossas diferenças”, conforme nos aponta Novaes (2000):
É
aqui, através do corpo e de todos os sentidos, que Bavcar nos ensina a ver. Ele
nos mostra que não se vê com os olhos apenas. É a crítica mais radical que
podemos ter da idéia primeira e imediata como verdade (NOVAES, 2000, p. 27)
A
deficiência torna-se um problema, um peso, um fardo para alguns que a tem e para
a maioria que não a tem, o que justifica evitarem o adjetivo CEGO. Algumas pessoas
vão além deste motivo: é como se fosse proibido dizer CEGO; como se fosse um
crime. Atitude que reflete o olhar do outro sobre a deficiência. Não há
naturalidade no lidar com a pessoa cega, surgem tensões sobre como proceder; há
incômodos; alguns te abordam, gritando, pois julgam que, além da cegueira, você
tem uma perda auditiva; outros te pegam pelo braço e te arrastam como se fosse
um carrinho de feira; sem, ao menos, perguntarem se deseja ajuda e para onde
vai.
- Mas... Estou esperando um amigo. Não preciso de
ajuda. E ainda saem se queixando de você:
- É cego e se acha! Não precisa de ajuda. Então,
fica aí perdido!
Sempre
estamos a mercê do outro, é o que muitos pensam. Já que não temos a visão,
estamos sob o seu domínio, a sua custodia a sua responsabilidade.
- Atravessa ela para mim. Obrigada!
- Bota ela no ônibus pra mim, por favor!
Transferência
de obrigação, o que me faz sentir um estorvo social.
Uma
vez, uma senhora que insistia em chamar-me de CEGUINHA, ficou muito ressentida
porque eu lhe disse, muito calmamente, que gostaria de ser chamada pelo meu
nome. Defendeu-se ela: -- Te ajudo a
atravessar a rua todos os dias e não é por mal que te chamo assim...
Uma aluna da universidade, sem mais nem menos, disse: - Professora, imagino que para você viver
bem, tem que ter uma auto estima muito elevada! Fiquei espantada com esta
fala. Ela conseguiu entender tudo, apenas a partir dos meus relatos. Não
podemos ter medo de viver, medo do que está por vir, por ouvir nas ruas e
locais que frequentamos. Temos que estar preparados para nos posicionar diante
das situações, pois, só assim, nos faremos respeitados. Dói! Como dói! Mas não
podemos nos entregar, nos deixar abalar por muito tempo. Isto só é nos permitido
por instantes. Tem que passar como uma rajada de vento. Temos que buscar força
não sei aonde e nos defendermos, mesmo que sejamos mal interpretados. - As pessoas não falam por mal! Eu só
conheço o bem e o mal. Se não falam por mal, então... E, quem fala o que quer,
ouve o que não quer. - Você é muito
intolerante, incompreensiva! Mas, só eu é tenho que compreender os outros?
Eles não têm que me compreender? Têm que se dar conta de que sou feita de carne
e osso e que nas minhas veias corre sangue... Não sou um ser inabalável,
intocável, imune a qualquer toxina. Sou humana. Apenas humana, para o bem ou
para o mal.
Há a perda da habilidade de ser "pequeno", de perder-se na
multidão, de não ser notado, de ser anônimo, de ser simplesmente mais um na
rua. É, essencialmente, a perda da capacidade de ajustar-se entre os companheiros
sem ser apontado como estranhamente diferente. Algumas deficiências não
evidenciam os que as possuem, passam despercebidos numa multidão. Outras, como
a cegueira, marcam quem a tem de tal maneira que ele é notado ao se locomover,
ao entrar num ambiente. Um ser incompleto. Não tem a visão e não pode confiar
nos outros sentidos. Não possui nenhum contato realmente seguro com a vida.
Está sem o controle de si mesmo, da sua vida, sem as cores de cada estação do
ano. Vive uma vida sem luz.
A
concepção equivocada das pessoas que enxergam, acerca da natureza da cegueira, geralmente
se expressa subjulgando a autonomia da pessoa cega.
Aquele
que não pode ver está, na verdade, criando uma polifonia do olhar, está
multiplicando as maneiras, as possibilidades de ver, substituindo, no caso e
essencialmente, o olho pela mão (BRISSAC, 2000, p. 42)
Se
saímos às ruas, se trabalhamos, se levamos uma vida que nos é possível,
considerando a nossa limitação, somos super-heróis, mediante os olhares de uns
e os coitadinhos, frente aos olhares de outros. Nunca somos apenas humanos.
Superestimados ou subestimados?! Eis a questão.
- Ela Prado?!
- E ELA?
-Ela quer beber o quê?
- A compra dela vai ser paga com cartão ou
dinheiro?
- Ela prefere que cor e qual o número do seu pé?
Dirijo-me,
então, a quem está me acompanhando:
- Diga a ele que quero coca com limão e sem gelo, já
que precisamos de intérprete!!! Ou...
- Eu fiz a compra, você está me vendo com a
carteira na mão. Então, poderia dirigir-se a mim?
E,
ainda...
Este "ela" sou eu? Porque se for, EU
prefiro preto ou caramelo e calço 34.
- Afinal, sou Ana Prado ou Ela Prado? Se não me
cuidar, entro em conflito de identidade.
É neste contexto social que sobrevive quem não tem a visão; dele, ela
traz todas as atitudes e sentimentos de compaixão pré-adquiridos. É dentro
desta sociedade que me movo. E, como se os outros problemas da cegueira não
bastassem, não sou aceita por mim mesma.
Na
comunidade, em geral, estamos marcados como pessoa cega. Os que nunca se
aperceberam dela e não pensavam nela em termos de adjetivo, têm agora uma nova
concepção a seu respeito; "a professora cega", a ênfase está na minha
cegueira. Possivelmente, um estranho pode se dirigir a uma pessoa cega, na rua,
para perguntar se cursou o Pedro II: - Sentei-me
ao lado de um cego durante todo o curso e pensei que fosse você. Era um ótimo
sujeito. Talvez, tivesse sido um ótimo sujeito, mas, aparentemente, a única
característica importante nele, era a sua cegueira.
O cego está assinalado, está colocado numa categoria na qual se espera
que ele se enquadre. Os que enxergam, temem a cegueira, e não podem enfrentar
as emoções e sentimentos que ela faz nascer neles de uma maneira tal que os
permita dar à pessoa cega seu lugar "pessoal" entre eles. Isto é: não
podem até que estejam dispostos a se enfrentarem e aos seus sentimentos, e
tratara pessoa cega como um ser humano, de acordo com seu valor individual, considerando
a sua especificidade: a falta da visão. A perda da visão é uma faca de dois
gumes. Não é só a atitude do outro, mas a atitude de quem ficou cego que
importa. Se ele sentir que não se "adaptou" à cegueira, se ele
guardou ressentimentos e concentra-se em sua dor, há razões suficientes para
não conseguir sua adequação social.
Se no íntimo ele não estiver apto e pronto a assumir sua posição
anterior, para viver, então, ele, com todas estas atitudes, aumentará a
dificuldade e a importância desta perda. Qualquer que seja a causa, a perda da
adequação social, a perda da aceitação pelos outros; a perda de sua
singularidade será a mais severa, entre múltiplas deficiências.
A "coisa"...
Manhã de segunda-feira. Terminal de ônibus. Pessoas apressadas. Barulho
ensurdecedor. Desci do ônibus, acompanhada por um rapaz que, gentilmente,
ofereceu-se para acompanhar-me à plataforma, onde pegaria outro ônibus.
Conversávamos, quando um grito que me fez tremer, nos interrompe de forma
abrupta, invadindo todo o ambiente:
- Me dá
ela aqui que eu a boto no ônibus!
Eu, irritada, e o rapaz, sem entender nada, dirige-se à funcionária do
local:
- Como assim, minha senhora?
- Sei que ônibus ela vai pegar. Deixa que eu boto
ela.
Eu me tornei uma
"coisa"...
- Pega ela aí; me dá ela aqui; bota ela
sentadinha aqui; vou te botar no ônibus...
Deixei de ser humana e passei a assumir o papel de um ser inanimado.
Por que as pessoas têm a necessidade de colocar o outro, pessoa com
deficiência, num patamar inferior ao seu? “Fazem
sem querer?” “Não fazem por mal!” Esta é uma visão corriqueira. Natural
para muitos, mas que me causa repulsa, deixando-me, às vezes, sem palavras;
outras vezes, irritada, e quando reajo, provoco indignação.
Somos vistos como seres assexuados, insensíveis, inanimados. Será que
pensam que, já que somos pessoas cegas, convivemos com esta limitação, tudo é
suportável? Pensam que nada nos aflige nos incomoda, nos faz sofrer? Estas
situações nos machucam, nos humilham, nos inferiorizam e, se reagimos, muitas
vezes, recebemos um outro rótulo: o de "revoltado. “ -Coitado ele não se aceita!” Não temos o direito de colocarmos o
nosso ponto de vista, direito garantido a todos! Como somos pessoas sem visão
sensorial, temos que aceitar tudo, passivamente. Pensam
que nada nos aflige, nos incomoda, nos faz sofrer?
Tenho
um superpoder: o da invisibilidade. Diversas vezes, não notam a minha presença
nos lugares e não falam comigo. Tenho que provocar uma situação impactante para
que se aproximem.
Sala
dos professores. Eu, professora como todos que a frequentam. Abro a porta, peço
licença. O maior falatório. Quando entro, se calam por alguns segundos.
Penso
que se olham, se acotovelam. Passado o susto, tudo volta ao normal. E eu?! Em
pé, parada, aguardando que alguém se aproximasse para me conduzir a um assento.
Então, começo a andar a deriva, trombo numa mesa de centro e algo cai no chão.
Uma professora me diz:
- Aqui é a sala dos professores! Quer falar com
alguém?
Olho
para ela, indignada, já que atuo na instituição há quatro anos e estou usando o
meu crachá, que me identifica como professora. Constrangida, falo:
- Sou professora. Se não fosse, não estaria aqui!
Quero apenas me sentar, pois só dou aula às 20 h.
Sento-me
e o tempo parece não passar. Ninguém se dirige a mim. Conversam entre si, riem,
trocam informações e eu???!!! Ali! Um
estranho no ninho!
Dias
depois, solicito uma reunião com a coordenadora do curso, no qual eu ministrava
duas disciplinas. Eu a entrego um cartaz imenso, que pode ser visto e lido à distância:
fundo branco, letras grandes e coloridas - "MANTER DISTÂNCIA DO ESTRANHO,
VALORIZA A FANTASIA RUIM."
Ela,
sem entender nada, questiona o porquê da frase e do meu pedido de fixá-lo na
sala dos professores. Explico e ela me compreende, me apóia e se desculpa pelo
ocorrido, sugerindo que outros cartazes como aquele fossem confeccionados e
espalhados pela universidade.
Universidade
pública. Evento: “Educação inclusiva em foco”. Mesa mediada por uma
professora/doutora no assunto. Sou anunciada. É a minha vez de falar. Mas...
-Onde está o microfone?
Aguardo.
E ela, em alto e bom som:
- Não vai pegar o microfone?
Penso
alto...
- Se eu soubesse onde ele está! Não me disse. É
necessário. Sou cega!"
A
platéia ri e alguns me aplaudem, timidamente. No fim do evento, sou informada
de que a professora, tão orgulhosa de ser uma das maiores referências no
cenário nacional em educação inclusiva, havia ficado sem graça, chegando a se
ruborizar. É de se admirar vindo de uma doutora em Educação Inclusiva!
Teoria!!! Mera teoria!!! Deve ter se debruçado anos e anos sobre livros,
artigos, mas... E a vivência? A convivência? O dia-a-dia? De que adianta a
teoria se não a exercemos na vida? Se, na vida não assumimos posturas coerentes
com nossos discursos, em algum determinado momento, nos trairmos e somos
desmascarados.
Referências Bibliográficas:
BAVCAR,
Evgen O contra-olhar.
Texto para o projeto “A Expressão Fotográfica e Os Cegos”.
Paris/Londrina: mimeo, correspondência pessoal à autora, 2003.
BRISSAC,
Nelson. Fotografando contra o vento.
In: Catálogo O Ponto Zero da Fotografia – Evgen Bavcar. Rio de Janeiro:
Very Special Arts do Brasil, 2000.
EWALD,
François. Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Veja, 1993.
LEVINAS,
Emmanuel. Ética e Infinito. São Paulo. Edições 70, 1982.
MAGALHÃES,
Fernanda. A Expressão Fotográfica e os Cegos. In: Caderno de Textos
Educação, Arte, Inclusão, n. 2, p. 56-58, Edição Especial com os Anais do 1°
Congresso Internacional Arte Sem Barreiras, Belo Horizonte: 2002/2003.
NOVAES,
Adauto. Evgen Bavcar – não se vê
com os olhos. In: O Ponto Zero da Fotografia – Evgen
Bavcar. Rio de Janeiro: Very Special Arts do Brasil, 2000.
_______
O Ensaio sobre a Cegueira.
Rio de Janeiro, Cia das Letras, 1995
SKLIAR, Carlos. Pedagogia
(improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro,
Ed. DP&A, 2003.
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