Apresentação

Este blog é destinado a narrar experiências de pais, de familiares e de amigos de crianças e de jovens com trissomia e, também, dos próprios indivíduos com síndrome de Down. Se constitui também num espaço aberto para compartilhar experiências comuns e, com isso, aprender com as diferentes formas de experienciarmos as relações com esses indivíduos, deles verem o mundo e do modo como o habitam. Para isso, pressupomos que os participantes desse blog se disponham a uma amizade (Philia) que seja suficiente aberta para ver no modo de vida (philosophia) dos indivíduos com Down, uma certa sabedoria (sophia), que nos ajude a pensar o que somos nós na relação com esse outro tão familiar e, ao mesmo tempo, tão diferente do que somos. Acreditamos que essa filosofia Down seja possível, talvez porque a experiencie cotidianamente com a nossa filha Ana Sophia, que transformou efetivamente nossas vidas com sua presença e nos ensinou o quão precioso é conviver com a diferença. Entendemos, também, que além de um espaço de troca da experiência comum, esse blog pode ser um dos locais onde uma comunidade silenciada poderá falar (como já o vem fazendo em outros meios), vencendo a vergonha e o medo para se mostrar a uma comunidade que pouco a vê, salvo por questões de caridade, algumas vezes de direito, mas pouquíssimas vezes como tendo algo a dizer. Talvez, ainda que muito remotamente, este seja um meio de tentar sensibilizar essa comunidade a qual pertencemos, inclusive os profissionais que trabalham com esses indivíduos, para que os vejam de outro modo, com o efetivo valor e dignidade que merecem. Ao menos esta é a ambiciosa proposta de seus criadores: Pedro Angelo Pagni e Neuci Leme de Camargo. E também a nossa modesta herança cultural para Ana Sophia, a quem dedicamos este blog.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Down Sophia - ensaio Ana Prado

Se deslocando ainda do universo Down e, também, da experiência da paternidade/maternidade, o presente ensaio de Ana Prado traz a experiência da autora, que é deficiente visual, narrando a sua relação com o mundo e consigo mesma. Testemunha um "olhar" outro em um mundo que tanto privilegia a visão em todos os aspectos da vida e de como esse outro que não vê, mas enxerga, se movimenta, se coloca e se mostra, nesse mesmo mundo. Um ensaio que, enfim, nos fez aprender o   quanto em cada gesto, muitas vezes, tratamos o deficiente como incapaz, mesmo com tanta capacidade e potencialidade, e o quanto nos escondemos sob o véu da ação caridosa,  para não mostrar nossa indiferença. Agradecemos a Ana pela contribuição e esperamos conhecê-la em breve! Boa leitura e bom aprendizado com a diferença. 

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"Amar é descobrir que a deficiência do próximo, faz parte do perfeito mosaico humano."
(Douglas Domingos Américo)

- Onde devo escrever o nome da minha mãe? Perguntei à professora que, sentada à minha frente, voltou-se para o aluno ao meu lado e comentou: - Tenho tanta pena dela! E ele, um garoto de 13 anos, como eu aquiesceu: - Eu também! Fiquei sem entender o comentário e pensei: - Será que estão falando de mim?! Mas, pena, por quê? Só por que perguntei onde devo escrever o nome da minha mãe no certificado de “Melhor mãe do mundo”? Só havia feito a pergunta por que não conseguia enxergar a linha. O papel era marfim e a linha de um cinza muito clarinho...
Já se perguntaram de que modo sente uma pessoa cega ou com baixa visão, quando o outro não reconhece, como humano, o seu modo de ver? Constantemente eu me pergunto: qual olhar é lançado a esta pessoa, quando se deparam com um olho esbugalhado, manchado, arregalado, um par de olhos fechados ou mesmo abertos, privados da visão? Minha condição tem me permitido pensar sobre essas questões e perceber que esse confronto desencadeia um desconforto que gera a necessidade de atribuir valor ao humano. Classificá-lo numa condição existencial de menos valor, um valor que o coloca numa condição de "menos humano".
Ah! Quanto revela este olhar sobre o outro! Um olhar julgador, avaliativo, opressor, piedoso! Somos educados para acreditarmos que há uma escala de valores para se classificar o ser humano, cujas referências estão pautadas em parâmetros da sua condição física, intelectual, sensorial. Não basta nascermos de um ser humano para sermos considerados humanos?! É preciso que sejamos normais ou anormais?!
Humano?! Apenas humano?! Não! Somos pessoas "especiais"! Recebemos um adjetivo que aparentemente nos exalta, mas, nos segrega, nos diferencia, nos distancia do "normal".
O anormal não é de natureza diferente da do normal. A norma, o espaço normativo, não conhece exterior. A norma integra tudo o que desejaria exercê-la – nada, nem ninguém, seja qual for a diferença que ostente, pode alguma vez pretender-se exterior, reivindicar uma alteridade tal que o torne um outro. (EWALD, 1993, p.87)
Início dos anos 80. Todos tinham pena de mim! Apesar dos 13 anos, era uma menininha magricela, pele desbotada, corpo de criança, ingênua, retraída, desajeitada e, para piorar: o "Ponto turístico" da escola. Era assim que me sentia, sob olhares voltados para mim, tanto dos colegas como dos professores, seja quando colava o rosto no papel para ler e escrever, ou quando os materiais escolares caíam no chão e eu não os encontrava. Eu chorava no banheiro, encolhida dentro do box.
 “O ser humano que nos gabamos de ser, soube sempre humilhar e ofender aqueles a quem, com triste ironia, continua a chamar seus semelhantes. Inventamos o que não existe na natureza, a crueldade, a tortura, o desprezo. Por um uso perverso da razão, viemos dividindo a humanidade em categorias irredutíveis entre si, os ricos e os pobres, os senhores e os escravos, os poderosos e os débeis, os sábios e os ignorantes, e em cada uma dessas divisões fizemos novas divisões, de modo a podermos variar e multiplicar à vontade, incessantemente, os motivos para o desprezo, para a humilhação e a ofensa”. (SARAMAGO, 1999)
Festa em família. Não me lembro onde nem quando, mas o que ouvi, não esqueci nunca mais: - Deixa ela comigo, pois ela é cega! Eu ainda não era cega. Tinha baixa visão. - Por que não podia brincar com os outros garotos? Só meu primo podia me pegar no pique - esconde. Eu fingia que não ouvia, pois sabia que de nada adiantaria explicar que eu enxergava; - só não enxergava muito bem. Cedo aprendi que na vida tem que ser 8 ou 80, meio termo não existe.
Mas o que é ver? Será que só o nosso olhar é capaz de desenhar o mundo que nos cerca? Porque é tão difícil para as pessoas conceberem outros modos de ver?
Evgen Bavcar professor de filosofia e fotógrafo profissional ficou cego aos doze anos de idade, nos oferece uma possibilidade de resistência ao imperialismo de uma visão oculocentrista. A partir da sua própria experiência com a cegueira aliada à prática da fotografia construiu o conceito de contra-olhar - referindo-se às imagens construídas pelos cegos no processo fotográfico: “(...) os cegos podem, pela primeira vez na história, criar um contra-olhar e sair da passividade insuportável daqueles que são vistos incessantemente, sem poder olhar para eles mesmos”. (Bavcar, 2003)
Dessa forma Bavcar questiona o absolutismo de um modo de ver que valoriza apenas a visão da retina como via única de percepção do real, em nossas sociedades contemporâneas. Nessa mesma obra, esse autor comenta a respeito da experiência fotográfica vivida por um cego:
(...) compreendi que as imagens têm realmente necessidade das trevas, da cegueira real, para aparecerem em toda a sua fragilidade. Por muito tempo observei esse contra-olhar subjacente ressuscitado graças a coragem de uma professora que recusava a predominância do mundo visível, tão nefasta para todos os que não o podem perceber à maneira de todo mundo”. (BAVCAR, 2003, p.103-104)
Primeiro de outubro de 1984. Manhã fria, porém ensolarada. Eu e meus pais nos dirigíamos para o hospital. Eu encarava o sol como se soubesse que estava vendo-o pela última vez. Segurava uma mexa dos meus cabelos longos na direção de seus raios e a via ficar dourada. - Ah, como eu gostaria que os meus cabelos tivessem aquela cor sem precisar da luz do sol! No quarto do hospital, vestia meu pijama de flanela cor-de-rosa que eu tanto gostava! O médico oftalmologista entra no quarto e diz à mãe: - Cubra os pés dela. Estão gelados. Minha mãe abriu o armário e tirou de lá um cobertor com cores vivas e os cobriu. Eu estava assustada, pois sabia que algo estava por vir. Não acredito em premunições, mas, tive, não sei como dizer. Será que foi intuição? Será que adivinhei? Não sei o que foi. Só sei que acertei! Na manhã seguinte, após a cirurgia de emergência no olho esquerdo, o qual ainda havia resíduo visual, ouvi o médico dizer que tudo havia corrido muito bem. No entanto, nunca mais vi a luz do sol refletida em meus cabelos nem as cores vivas de um cobertor. Fiquei cega, naquele dia.
Repouso absoluto, consultas médicas semanais. -A luz está apagada ou acesa? Não sei. O médico, toda semana, vinha com a mesma pergunta e eu com a mesma resposta. Ele não queria acreditar. Nem eu. Foi o fim de uma certa maneira de viver, término de hábitos adquiridos, despojamento de realizações. A perda de formas de relações humanas até então estabelecidas.
As perdas impostas a quem perdeu a visão são múltiplas. Elas se inter-relacionam, elas se sobrepõem umas às outras. Qualquer uma delas é por si mesma grave, intensa e, juntas, constituem as múltiplas limitações que é a cegueira. Cada perda inclui um adeus doloroso. Mas, com a morte do homem de visão, o homem cego nasce. E a sua vida pode ser boa. Entendi que a vida modificou-se, mas não terminou.
Vida de pessoa cega. Tudo novo.
- Como encarar as pessoas que me viram pela última vez, enxergando? Como elas iriam me enxergar?
Com pena, é claro! Medalhinhas de santos, rezas, orações. Nada disso mexia comigo. Sabia que estava cega e para sempre... Meus amigos permaneceram leais, afinal:
- Não se afasta de uma amiga porque se tornou cega!
Logo, percebi que alguma coisa estava forçada. Eles vinham e eram gentis; mas quando iam comentavam entre si:
- Pobre Ana! Está certamente aceitando de modo admirável!
- É penoso vê-la daquele jeito, apesar dela estar confiante.
Compreendi que não era mais Ana, e sim, Ana, a cega.
Sentia que aos poucos, perdia meu lugar na sociedade. Entretanto, é possível que tenha assumido um novo lugar: "Ana otimista - a pobre cega - o exemplo de vida". Perdi meu lugar original. Haviam me dado uma nova “personalidade”, um “novo caráter”.
Para Levinas é no face-a-face humano que se irrompe todo sentido. Diante do rosto do Outro, o sujeito se descobre responsável:
É uma banalidade dizer que jamais existimos no singular. Estamos rodeados de seres e de coisas com os quais mantemos relações. Por meio da visão, por meio do tato, por meio da simpatia, por meio do trabalho comum, estamos com os outros. Todas essas relações são transitivas. Toco um objeto, vejo o outro; mas eu não sou o outro. (LEVINAS, 1982, p.50)
Ensino médio. Sistema de leitura e escrita braille. Colegas me guiando pelos corredores da escola. Provas orais. Ai! Como enxergar faz falta! Os trabalhos em grupo, eu fazia com quem sobrava e, se o professor organizasse duplas, eu poderia ser mais uma, na dupla que me aceitasse. Até que perceberam que a minha cegueira, não me impedia de pensar, problematizar, articular idéias. Começaram a brigar pela minha companhia. Eu???? Sim, agora eu escolhia com quem eu queria ficar.
O trabalho...
 - Trabalhar, pra quê?! A família dela tem dinheiro, Seu pai tem carro importado. Ela nem estudou aqui. Agora quer trabalhar? Diziam pelos corredores.
Foi preciso muita humildade, parceria, interesse, num mundo, até então, desconhecido. Ah, como aprendi a viver com os meus alunos e amigos cegos! Aprendi, principalmente que não "devemos ter medo dos confrontos... até os planetas se chocam e do caos nascem as estrelas" (Charles Chaplin).
- E ainda há gente que reclama da vida! Diz a senhora, sentada ao meu lado, no ônibus que, ora me olha, ora olha a pessoa que está em pé ao seu lado. De novo volta a comentar:
- Gente perfeita: dois braços, duas pernas, enxerga, ouve, fala... E veja está menina: com uma carinha tão boa!
A senhora em pé ao seu lado fala:
 - Que judiação!
- Deus sabe o que faz!
E o assunto vai rendendo... Rendendo... E a minha paciência se esgotando... Se esgotando... Eu estava me sentindo um peixinho no aquário. Ainda bem que se aproximava a hora do meu desembarque. Poucos instantes antes, me levanto e peço licença. A senhora, ao meu lado, me empurra com o braço e grita:
- Onde você vai descer? Segura senão você cai!
Caio sentada no banco, pois ela me dá um empurrão. Peço licença novamente, desta vez, com mais firmeza. O ônibus já estava estacionando para o desembarque e ela, mais uma vez: -- você vai cair de novo! Encho o peito de ar e digo: - Senhora, com licença! Vou saltar aqui! Ela, desesperada: - Aqui é a UERJ! Onde você vai descer? O ônibus volta a se movimentar. Eu, sem poder sair do canto, dou um grito sufocado: -- Motorista, por favor, pare aí! Vou descer. E a senhora: - Onde você vai descer? Não respondo. Empurro a senhora com todas as minhas forças e, aliviada, piso em terra firme.
Por que foi que cegamos?
Não sei?
Talvez um dia se chegue a conhecer a razão.
Queres que te diga o que penso?
Diz...
Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. (SARAMAGO, 1995)
Essas são as palavras com que José Saramago encerra sua obra: O ensaio sobre a cegueria. As palavras do autor português nos interrogam sobre nossas condições existenciais a partir da metáfora do olhar. Diante de um mundo mediado por imagens, Saramago parece querer nos fazer pensar sobre uma outra estética de visão. Talvez a possibilidade de um deslocamento da concepção de olhar, já que o excesso visão dificulta nossa percepção de que o mundo não se reduz somente aquilo a que os olhos alcançam.
Ando ou rodo?!
-- Não passe por aí!
- Venha comigo.
- Ali tem uma rampa. É melhor para você! Diz um homem, me puxando pela alça da bolsa.
- Meu senhor, posso te explicar algo?
- As pessoas cegas não têm nenhuma dificuldade em descer e subir um ou vários degraus.
 E ele insiste, me puxando:
- Já falei aqui é melhor para você! Não vai ter que descer o degrau. Vai só andar!
Puxo a minha bolsa e falo...
 - Senhor olhe para mim! Olhe para os meus pés! Viu? - Tenho pés e não rodinhas. As rampas são feitas para cadeirantes, pessoas com mobilidade reduzida,... Não é o meu caso!
Ele, impaciente, enche o peito de ar e diz cheio de si:
- Aprendi isto na empresa onde trabalho. Um professor falou que as rampas são feitas, pensando nas pessoas com necessidades especiais, inclusive, nas pessoas assim como você, o que evita que caiam.
Tentei argumentar, mas ele me cortou, dando "tchau".
Aqueles que são considerados cegos, isto é, aqueles que não podem perceber o mundo visual através da visão, podem, entretanto, percebê-lo através dos sentidos remanescentes, os quais são estimulados, sensibilizados a partir da necessidade de usá-los para sobreviverem num mundo imagético.
A isto Bavcar chama de vistas táteis. Ver com a ponta dos dedos e ainda, através da audição, do paladar, do olfato. Pela pele é possível sentir o calor do sol, o vento ou o calor do outro. (...) é possível ver o mundo pelos olhos da alma. Este é, no entanto, um olhar incompreendido por aqueles considerados videntes. (MAGALHÃES, 2003)
Churrascaria em Ipanema. Almoço entre amigos. Eu, a única pessoa cega na mesa. Fazemos os pedidos. Entre conversas e risadas, bebemos e beliscamos aperitivos. O Garçom traz os pratos e os talheres. Chega a comida. Hummm!!! O aroma está convidativo! Uma amiga me serve. Agradeço. Pego os talheres e, no momento em que estou levando a primeira garfada à boca, alguém, subitamente, tira o garfo da minha mão e diz:
- Trouxe uma colher para ela. É perigoso ela se machucar com o garfo. Fico sem ação. Atônita. Chamamos o garçom. Questiono:
- Não entendi o porquê da colher?
- É melhor para você!
- Quem te disse que a colher é melhor para mim? Quem sabe o que é melhor para mim, sou eu! Meu senhor, é impossível comer churrasco com colher. Por favor, traga um garfo e retire esta colher.
Carlos Skliar (2003), em Pedagogia (improvável) da diferença, nos fala da existência de dois olhares. Um olhar que parte da “mesmidade” e outro que se inicia no “Outro”, na “expressividade de outro rosto”. Para ele, esta distinção pode ser uma forma de ruptura com o “eu mesmo”, “refúgio do próprio corpo” e “do mesmo olhar”, travessia para o encontro com o outro que “retorna e nos interroga”, “nos comove e nos denuda”, “nos deixa sem nome.” (p.67/68)
- Tem namorado ou marido? Às vezes, me perguntam.
- Atualmente, estou sozinha. Respondo
- Você tem que arrumar um namorado que enxergue. Tem muito rapaz bom por aí! É melhor um homem que enxergue para que ele cuide de você.
Eu, indignada:
- Mas... Não preciso de um cuidador. Tenho necessidades afetivas como qualquer ser humano.
As relações humanas entre uma pessoa vidente e uma pessoa cega, independentemente do sexo, são vistas por muitos, como um ato de caridade, o que caracteriza quem enxerga como “pessoa de bom coração e alma nobre”. Se estamos acompanhados por alguém enxergante, perguntam se somos irmãos ou se ele está nos acompanhando. Nunca questionam se somos amigos. Amizade entre uma pessoa cega e uma pessoa vidente, para muitos, é impossível! Se estão juntos, com certeza, a pessoa com visão está ajudando a sem visão, o que denota que nós, pessoas cegas, não temos nada a oferecer às pessoas videntes, além do trabalho que damos a elas.
Bengala???!!!
-Você não precisa disso. Te levamos de carro. Caso não possamos levá-la, te damos o dinheiro do táxi.
Os amigos cegos:
- Você vai aprender. Nós vamos te ensinar a usar a bengala.
- Viu a corrente de ar?
- Então, aqui, é a esquina.
Não adiantava. Não havia incentivo nem credibilidade em casa. Com intenção de me protegerem, estavam me impedindo de caminhar com as minhas próprias pernas e provar para todos, inclusive, pra mim, que eu era capaz, bastava acreditar e enfrentar o mundo. Puxa! Enfrentar o mundo! Faço isso até hoje, desde o momento em que saio de casa, acompanhada pela minha inseparável bengala.
Praça Saens Pena. Meio da tarde. Ruas lotadas. Verão. Caminho pela calçada, tentando me desviar dos carros estacionados, barracas de camelô, multidão apressada, canteiros e atenta à minha bengala, que corre o risco de ser pisoteada. Ufa!!! Paro em frente à faixa de segurança, aguardando o auxílio de alguém para atravessar a rua. Ouço: "-Ela é cega?" Apesar da pergunta não ter sido dirigida a mim, respondo com tom de bom humor: "- Não! Estou treinando para quando houver um apagão."
Olhares surpresos, de indignação, dúvida, medo. - Como sai na rua sozinha? Não se perde? "Deus te ajuda, né? “eles” dizem.
Eu, perplexa, falo: - Se Deus me ajuda, espero que Ele pare o ônibus para mim, pois está chovendo e vou ficar no ponto sozinha.
As pessoas procuram amenizar a cegueira, buscando explicações no inexplicável, lançando mão do transcendental.
Cegueira x beleza x sucesso.
- Nossa! Ela é tão bonita! Viu os olhos dela? São limpinhos e verdes! Veste-se tão bem! Ela é cega, mas é inteligente, sabe muito bem o que está falando... Para combinar, tinha que ser: cega, feia e incompetente.
- Por que você é assim?
- Assim como?  Pergunto.
- Assim! Com este problema! Boa oportunidade para alguns esclarecimentos:
- A cegueira não é um problema; faz parte de mim, é uma das minhas peculiaridades. E você pode dizer a palavra CEGA. Não há problema algum em ouvi-la. A pessoa insiste:
- Mas... Você nasceu assim?
 De nada adiantou o meu discurso. Então, desisto: - Não! Nasci bem pequenininha e, aos poucos, fui crescendo... Por que as pessoas são ASSIM?!
As relações de tempo e espaço no mundo contemporâneo provocam distanciamentos cada vez maiores, entre as pessoas. Não temos tempo de parar para prestar maior atenção ao outro. Nesse contexto a dicotomia entre videntes e não videntes fica cada vez mais clara. “Estamos todos sofrendo de uma espécie de cegueira social que nos afasta pelas nossas diferenças”, conforme nos aponta Novaes (2000):
É aqui, através do corpo e de todos os sentidos, que Bavcar nos ensina a ver. Ele nos mostra que não se vê com os olhos apenas. É a crítica mais radical que podemos ter da idéia primeira e imediata como verdade (NOVAES, 2000, p. 27)
A deficiência torna-se um problema, um peso, um fardo para alguns que a tem e para a maioria que não a tem, o que justifica evitarem o adjetivo CEGO. Algumas pessoas vão além deste motivo: é como se fosse proibido dizer CEGO; como se fosse um crime. Atitude que reflete o olhar do outro sobre a deficiência. Não há naturalidade no lidar com a pessoa cega, surgem tensões sobre como proceder; há incômodos; alguns te abordam, gritando, pois julgam que, além da cegueira, você tem uma perda auditiva; outros te pegam pelo braço e te arrastam como se fosse um carrinho de feira; sem, ao menos, perguntarem se deseja ajuda e para onde vai.
- Mas... Estou esperando um amigo. Não preciso de ajuda. E ainda saem se queixando de você:
- É cego e se acha! Não precisa de ajuda. Então, fica aí perdido!
Sempre estamos a mercê do outro, é o que muitos pensam. Já que não temos a visão, estamos sob o seu domínio, a sua custodia a sua responsabilidade.
- Atravessa ela para mim. Obrigada!
- Bota ela no ônibus pra mim, por favor!
Transferência de obrigação, o que me faz sentir um estorvo social.
Uma vez, uma senhora que insistia em chamar-me de CEGUINHA, ficou muito ressentida porque eu lhe disse, muito calmamente, que gostaria de ser chamada pelo meu nome. Defendeu-se ela: -- Te ajudo a atravessar a rua todos os dias e não é por mal que te chamo assim...
Uma aluna da universidade, sem mais nem menos, disse: - Professora, imagino que para você viver bem, tem que ter uma auto estima muito elevada! Fiquei espantada com esta fala. Ela conseguiu entender tudo, apenas a partir dos meus relatos. Não podemos ter medo de viver, medo do que está por vir, por ouvir nas ruas e locais que frequentamos. Temos que estar preparados para nos posicionar diante das situações, pois, só assim, nos faremos respeitados. Dói! Como dói! Mas não podemos nos entregar, nos deixar abalar por muito tempo. Isto só é nos permitido por instantes. Tem que passar como uma rajada de vento. Temos que buscar força não sei aonde e nos defendermos, mesmo que sejamos mal interpretados. - As pessoas não falam por mal! Eu só conheço o bem e o mal. Se não falam por mal, então... E, quem fala o que quer, ouve o que não quer. - Você é muito intolerante, incompreensiva! Mas, só eu é tenho que compreender os outros? Eles não têm que me compreender? Têm que se dar conta de que sou feita de carne e osso e que nas minhas veias corre sangue... Não sou um ser inabalável, intocável, imune a qualquer toxina. Sou humana. Apenas humana, para o bem ou para o mal.
Há a perda da habilidade de ser "pequeno", de perder-se na multidão, de não ser notado, de ser anônimo, de ser simplesmente mais um na rua. É, essencialmente, a perda da capacidade de ajustar-se entre os companheiros sem ser apontado como estranhamente diferente. Algumas deficiências não evidenciam os que as possuem, passam despercebidos numa multidão. Outras, como a cegueira, marcam quem a tem de tal maneira que ele é notado ao se locomover, ao entrar num ambiente. Um ser incompleto. Não tem a visão e não pode confiar nos outros sentidos. Não possui nenhum contato realmente seguro com a vida. Está sem o controle de si mesmo, da sua vida, sem as cores de cada estação do ano. Vive uma vida sem luz.
A concepção equivocada das pessoas que enxergam, acerca da natureza da cegueira, geralmente se expressa subjulgando a autonomia da pessoa cega.
Aquele que não pode ver está, na verdade, criando uma polifonia do olhar, está multiplicando as maneiras, as possibilidades de ver, substituindo, no caso e essencialmente, o olho pela mão (BRISSAC, 2000, p. 42)
Se saímos às ruas, se trabalhamos, se levamos uma vida que nos é possível, considerando a nossa limitação, somos super-heróis, mediante os olhares de uns e os coitadinhos, frente aos olhares de outros. Nunca somos apenas humanos. Superestimados ou subestimados?! Eis a questão.
 - Ela Prado?!
 - E ELA?
-Ela quer beber o quê?
- A compra dela vai ser paga com cartão ou dinheiro?
- Ela prefere que cor e qual o número do seu pé?
Dirijo-me, então, a quem está me acompanhando:
- Diga a ele que quero coca com limão e sem gelo, já que precisamos de intérprete!!! Ou...
- Eu fiz a compra, você está me vendo com a carteira na mão. Então, poderia dirigir-se a mim?
E, ainda...
Este "ela" sou eu? Porque se for, EU prefiro preto ou caramelo e calço 34.
- Afinal, sou Ana Prado ou Ela Prado? Se não me cuidar, entro em conflito de identidade.
É neste contexto social que sobrevive quem não tem a visão; dele, ela traz todas as atitudes e sentimentos de compaixão pré-adquiridos. É dentro desta sociedade que me movo. E, como se os outros problemas da cegueira não bastassem, não sou aceita por mim mesma.
Na comunidade, em geral, estamos marcados como pessoa cega. Os que nunca se aperceberam dela e não pensavam nela em termos de adjetivo, têm agora uma nova concepção a seu respeito; "a professora cega", a ênfase está na minha cegueira. Possivelmente, um estranho pode se dirigir a uma pessoa cega, na rua, para perguntar se cursou o Pedro II: - Sentei-me ao lado de um cego durante todo o curso e pensei que fosse você. Era um ótimo sujeito. Talvez, tivesse sido um ótimo sujeito, mas, aparentemente, a única característica importante nele, era a sua cegueira.
O cego está assinalado, está colocado numa categoria na qual se espera que ele se enquadre. Os que enxergam, temem a cegueira, e não podem enfrentar as emoções e sentimentos que ela faz nascer neles de uma maneira tal que os permita dar à pessoa cega seu lugar "pessoal" entre eles. Isto é: não podem até que estejam dispostos a se enfrentarem e aos seus sentimentos, e tratara pessoa cega como um ser humano, de acordo com seu valor individual, considerando a sua especificidade: a falta da visão. A perda da visão é uma faca de dois gumes. Não é só a atitude do outro, mas a atitude de quem ficou cego que importa. Se ele sentir que não se "adaptou" à cegueira, se ele guardou ressentimentos e concentra-se em sua dor, há razões suficientes para não conseguir sua adequação social.
Se no íntimo ele não estiver apto e pronto a assumir sua posição anterior, para viver, então, ele, com todas estas atitudes, aumentará a dificuldade e a importância desta perda. Qualquer que seja a causa, a perda da adequação social, a perda da aceitação pelos outros; a perda de sua singularidade será a mais severa, entre múltiplas deficiências.
A "coisa"...
Manhã de segunda-feira. Terminal de ônibus. Pessoas apressadas. Barulho ensurdecedor. Desci do ônibus, acompanhada por um rapaz que, gentilmente, ofereceu-se para acompanhar-me à plataforma, onde pegaria outro ônibus. Conversávamos, quando um grito que me fez tremer, nos interrompe de forma abrupta, invadindo todo o ambiente:
 - Me dá ela aqui que eu a boto no ônibus!
Eu, irritada, e o rapaz, sem entender nada, dirige-se à funcionária do local:
- Como assim, minha senhora?
- Sei que ônibus ela vai pegar. Deixa que eu boto ela.
 Eu me tornei uma "coisa"...
- Pega ela aí; me dá ela aqui; bota ela sentadinha aqui; vou te botar no ônibus... Deixei de ser humana e passei a assumir o papel de um ser inanimado.
Por que as pessoas têm a necessidade de colocar o outro, pessoa com deficiência, num patamar inferior ao seu? “Fazem sem querer?” “Não fazem por mal!” Esta é uma visão corriqueira. Natural para muitos, mas que me causa repulsa, deixando-me, às vezes, sem palavras; outras vezes, irritada, e quando reajo, provoco indignação.
Somos vistos como seres assexuados, insensíveis, inanimados. Será que pensam que, já que somos pessoas cegas, convivemos com esta limitação, tudo é suportável? Pensam que nada nos aflige nos incomoda, nos faz sofrer? Estas situações nos machucam, nos humilham, nos inferiorizam e, se reagimos, muitas vezes, recebemos um outro rótulo: o de "revoltado. “ -Coitado ele não se aceita!” Não temos o direito de colocarmos o nosso ponto de vista, direito garantido a todos! Como somos pessoas sem visão sensorial, temos que aceitar tudo, passivamente. Pensam que nada nos aflige, nos incomoda, nos faz sofrer?
Tenho um superpoder: o da invisibilidade. Diversas vezes, não notam a minha presença nos lugares e não falam comigo. Tenho que provocar uma situação impactante para que se aproximem.
Sala dos professores. Eu, professora como todos que a frequentam. Abro a porta, peço licença. O maior falatório. Quando entro, se calam por alguns segundos.
Penso que se olham, se acotovelam. Passado o susto, tudo volta ao normal. E eu?! Em pé, parada, aguardando que alguém se aproximasse para me conduzir a um assento. Então, começo a andar a deriva, trombo numa mesa de centro e algo cai no chão. Uma professora me diz:
- Aqui é a sala dos professores! Quer falar com alguém?
Olho para ela, indignada, já que atuo na instituição há quatro anos e estou usando o meu crachá, que me identifica como professora. Constrangida, falo:
- Sou professora. Se não fosse, não estaria aqui! Quero apenas me sentar, pois só dou aula às 20 h.
Sento-me e o tempo parece não passar. Ninguém se dirige a mim. Conversam entre si, riem, trocam informações e eu???!!!  Ali! Um estranho no ninho!
Dias depois, solicito uma reunião com a coordenadora do curso, no qual eu ministrava duas disciplinas. Eu a entrego um cartaz imenso, que pode ser visto e lido à distância: fundo branco, letras grandes e coloridas - "MANTER DISTÂNCIA DO ESTRANHO, VALORIZA A FANTASIA RUIM."
Ela, sem entender nada, questiona o porquê da frase e do meu pedido de fixá-lo na sala dos professores. Explico e ela me compreende, me apóia e se desculpa pelo ocorrido, sugerindo que outros cartazes como aquele fossem confeccionados e espalhados pela universidade.
Universidade pública. Evento: “Educação inclusiva em foco”. Mesa mediada por uma professora/doutora no assunto. Sou anunciada. É a minha vez de falar. Mas...
-Onde está o microfone?
Aguardo. E ela, em alto e bom som:
- Não vai pegar o microfone?
Penso alto...
- Se eu soubesse onde ele está! Não me disse. É necessário. Sou cega!"
A platéia ri e alguns me aplaudem, timidamente. No fim do evento, sou informada de que a professora, tão orgulhosa de ser uma das maiores referências no cenário nacional em educação inclusiva, havia ficado sem graça, chegando a se ruborizar. É de se admirar vindo de uma doutora em Educação Inclusiva! Teoria!!! Mera teoria!!! Deve ter se debruçado anos e anos sobre livros, artigos, mas... E a vivência? A convivência? O dia-a-dia? De que adianta a teoria se não a exercemos na vida? Se, na vida não assumimos posturas coerentes com nossos discursos, em algum determinado momento, nos trairmos e somos desmascarados.
Referências Bibliográficas:
BAVCAR, Evgen O contra-olhar. Texto para o projeto “A Expressão Fotográfica e Os Cegos”. Paris/Londrina: mimeo, correspondência pessoal à autora, 2003.
BRISSAC, Nelson. Fotografando contra o vento. In: Catálogo O Ponto Zero da Fotografia – Evgen Bavcar. Rio de Janeiro: Very Special Arts do Brasil, 2000.
EWALD, François. Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Veja, 1993.
LEVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito. São Paulo. Edições 70, 1982.
MAGALHÃES, Fernanda. A Expressão Fotográfica e os Cegos. In: Caderno de Textos Educação, Arte, Inclusão, n. 2, p. 56-58, Edição Especial com os Anais do 1° Congresso Internacional Arte Sem Barreiras, Belo Horizonte: 2002/2003.
NOVAES, Adauto. Evgen Bavcar – não se vê com os olhos. In: O Ponto Zero da Fotografia – Evgen Bavcar. Rio de Janeiro: Very Special Arts do Brasil, 2000.
SARAMAGO, José. Folhas Políticas (1976-1998) Ano da Publicação Original: 1999 - Ano da Digitalização: 2005 - http://pt.scribd.com/doc/7037391/Jose-SARAMAGO-Folhas-Politicas
_______    O Ensaio sobre a Cegueira. Rio de Janeiro, Cia das Letras, 1995
SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro, Ed. DP&A, 2003.  

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